Wednesday, September 17, 2008

Da informação pública que não chega ao público

- “Um governo do povo sem informação para o povo, ou os meios para adquiri-la, é sim um governo, mas que é um prólogo à farsa ou à tragédia, ou talvez a ambas as coisas”, James Madison, 1822


Celebra-se, a 28 de Setembro, o Dia Mundial do Direito à Informação, efeméride à qual países como Moçambique, com pouco menos de 20 anos de democracia formal, não tem como ficar alheios. O número 1 do artigo 48º da Constituição da República (CR) estipula que “todos os cidadãos têm direito à liberdade de expressão, à liberdade de imprensa, bem como ao direito à informação”. Será que a parte relativa ao direito à informação é efectiva cá entre nós? Claramente que não, dado que a inexistência no país de uma lei específica sobre direito à informação dificulta sobremaneira o usufruto deste instituto constitucional, o que ajudaria na solidificação da ainda incipiente boa governação.

Decidi, no primeiro trimestre de 2007, fazer uma pequena investigação jornalística em torno do desempenho económico das empresas financeiramente participadas pelo Estado, e que são, por essa via, propriedade dos contribuintes, que descontam ou descontaram dos seus rendimentos para que firmas tais pudessem ser o que são hoje.
Na delimitação que fiz do objecto dessa investigação jornalística, interessava-me saber i) quantas e quais empresas são participadas pelo Estado, ii) o que dizem os mais recentes relatórios de auditoria e contas das mesmas, iii) quais são as que estão a dar prejuízos e porquê, iv) quais são as que estão a dar lucros, vi) em que conta esses lucros são depositados e vii) qual é o destino que tem sido dado a esses valores.
Para iniciar essa “empreitada social”, era imprescindível chegar à fala com os responsáveis do Instituto de Gestão das Participações do Estado (IGEPE), para deles poder ter explicações ou respostas às minhas preocupações. Assim, contactei com o director da empresa que gere a componente “comunicação e imagem” daquela instituição, que, tal como o seu próprio nome sugere, ocupa-se pelas acções do Estado em várias firmas, muitas delas ocupando lugares de destaque no já tradicional ranking das “100 Maiores”, que é feito pela KPMG.
“Manda para o meu e-mail as questões que pretendes colocar aos gestores do IGEPE. Depois de vê-las digo-te alguma coisa”, assim me respondeu o gestor, em outsourcing, de “comunicação e imagem” do IGEPE, por sinal um antigo jornalista. Lá fiz a sua vontade, mais ou menos nos moldes em que delimitara o objecto da projectada pesquisa jornalística, tendo de seguida ligado de volta ao dito cujo, para que me desse confirmação de recepção do meu e-mail. E foi o que realmente aconteceu.
À medida que o tempo foi passando, fui me apercebendo de que ter acesso aos ficheiros do IGEPE, ou pelo menos conseguir uma entrevista com um dos seus responsáveis, era uma missão difícil. Liguei várias vezes ao “homem de imprensa” daquela instituição pública, que me dizia “os administradores estão fora”, “estão de férias”, “ainda estão a analisar as suas questões”, para no fim do dia optar pelo “mais cómodo”: não atender mais às minhas chamadas telefónicas.
Com a indisponibilidade do “padre” em colaborar, procurei o número do telefone móvel do próprio “papa”. Refiro-me, pois, a Daniel Tembe, que é o Presidente do Conselho de Administração (PCA) do IGEPE. Quando liguei, ele respondeu-me claro e directo: “Sobre o que queres saber, é bom nunca pensares em ter a nossa colaboração. Isso é impossível”. Afinal, o que antes pensava que se tratasse de uma missão difícil era, simplesmente, uma missão impossível, pelo menos por intermédio dos canais formais.
Em boa verdade, vários jornalistas esbarram-se, no seu dia a dia, com todo o tipo de dificuldades em aceder à informação de interesse público. E, como os que trancam informação pública acabam sendo os primeiros a querer ler as publicações, os conteúdos acabam chegando ao destinatário sem o devido “sumo”. Aí, os “apóstolos da desgraça” lançam diversificadas críticas aos profissionais da comunicação social. E a dificuldade em aceder à informação pública “apoquenta” não só os jornalistas, como também a investigadores, pesquisadores e público em geral.
Por exemplo, o antropólogo Emídio Gune, que é docente na Universidade Eduardo Mondlane, afirmou, quando apresentava, em Julho de 2005, o relatório de uma sua pesquisa no Departamento de Arqueologia e Antropologia (DAA) da UEM, em torno do “ensaio” que se fez à mudança de nome da Escola Secundária da Matola, para Escola Secundária Martin Luther King, que uma das fragilidades que teve no decurso da sua investigação residia no facto de não ter tido acesso às razões oficiais [de mudança de nome] de forma oficial, para o que alguém designara de “simples mudança simbólica”…
A “confissão” do antropólogo Emídio Gune faz, bem vistas as coisas, cair por terra a tese até certo ponto forçada dalguns círculos da nossa sociedade, segundo os quais não é, por exemplo, premente uma Lei de Direito à Informação, “dado que esses jornalistas que andam a exigir isso já tem uma Lei de Imprensa, que bem lhes basta”. Do direito à informação devem usufruir todos os cidadãos, desde políticos, pesquisadores, investigadores, inspectores policiais, estudantes e jornalistas.
Os jornalistas acabam sendo vistos como “os tais”, dado estes serem, como costumava dizer Carlos Cardoso, “voz dos que não têm voz”. E, para cumprirem com essa sua função social, precisam de aceder aos promotores de notícias, quais fontes de informação. Fazem-no sempre sob pressão dos deadlines ou horas de fecho, que tem que ser rigorosamente cumpridos, por fazerem parte da cultura jornalística. Com a não efectividade do direito à informação, eles são as maiores vítimas.
É um pouco nessa linha que Joaquim Letria, autor da obra “A Verdade Confiscada”, tenha concluído, com alguma ironia, que, “subitamente, a profissão de jornalista tornou-se tão importante que podemos ver jornalistas em directo entrevistando jornalistas que entrevistaram outros jornalistas, para, no final, tudo ser ainda comentado por outros jornalistas”. Quando se privatiza a informação pública, coisas destas chegam a ser inevitáveis!

Boa governação impossível
sem direito à informação

Discursando na abertura de uma conferência nacional sobre Direito à Informação e Boa Governação, promovida em Maputo em Março de 2007 pelo MISA-Moçambique, Vitória Dias Diogo, na altura presidente da extinta Autoridade Nacional da Função Pública (ANFP) e agora ministra da Função Pública, precisou que era difícil, ou mesmo impossível, falar de boa governação num ambiente onde não existe a livre expressão e o pleno exercício do direito à informação.
Como que a dar vazão à sua afirmação supra, Vitória Diogo referiu que isso se explica no facto de a correcta participação da sociedade no processo governativo estar intrinsecamente ligada ao que chamou de “efectividade do seu direito à informação e da oportunidade de livre expressão”.
“Se informação é poder” – sublinhou Vitória Diogo – “então esse poder deve ser propriedade de todos para, com sucesso, nos empenharmos no processo de desenvolvimento do nosso país e do fortalecimento da democracia”. Ela declarou, na mesma ocasião, que a instituição que representava estava concentrada na busca de soluções que tornem a área de gestão documental, informação e arquivos do Estado mais moderna, “como um depositário da memória institucional da administração pública moçambicana”.
Sou dos que se congratulam pelo facto de, no âmbito da reforma do sector público, alguma coisa estar a ser feita no sentido de se profissionalizar e modernizar, em termos globais, a gestão da informação sob custódia da administração pública. Não é por acaso que o Prémio Nobel foi, em 2001, atribuído a Joseph Stiglitz, George Arkelof e Michael Spence, em jeito de reconhecimento ao importante estudo que fizeram sobre “Implicações Económicas da Assimetria da Informação”.
A gestão da informação, mesmo sendo crucial, não é, de per se, o princípio e o fim deste desiderato que é o direito à informação. Ela, a gestão da informação, deve ser sempre acompanhada por mecanismos céleres sobre como disponibilizar essa informação na posse da administração pública aos cidadãos. A informação de interesse público é, pois, parte do processo governativo.
Em artigo por si escrito em 2002, intitulado “Transparência no Governo”, Joseph Stiglitz enfatiza que um dos mais importantes contributos da moderna teoria de informação reside no facto dela ter feito vincar a ideia segundo a qual o equilíbrio informativo entre os decisores e os que eles servem é um bem comum. Isso é cada vez mais razoável em sociedades democráticas como a moçambicana, em que faz falta a efectivação do constitucional direito à informação.

Lei de Direito à Informação precisa-se!

O que pode, então, tornar efectivo o direito à informação, que é, e muito bem, reconhecido a todos pela CR, designadamente no seu artigo 48º? Parece-nos óbvio que uma lei específica sobre a matéria pode ajudar nisso. Não existindo um dispositivo legal tal, aceder à informação sob custódia da administração pública tornou-se num real “bico-de-obra”, perdendo, com isso, o simples cidadão e o país no geral.
Com o actual quadro lacunoso em que nos encontramos, não temos como saber, pelo menos pelas vias formais, do seguinte:

- Volvidos 10 anos, ninguém conhece os termos do contrato que o governo assinou com a firma britânica Crown Agents, visando a “reforma e modernização” das Alfândegas de Moçambique;
- Ao cabo de tanta letargia, acabou sendo feita uma auditoria forense ao Banco Austral, mas, até hoje, não se trazem a público, de forma formal, as suas constatações, enquanto na altura dos rombos, com sangue à mistura, aquela instituição financeira tinha o Estado como seu accionista maioritário;
- Desconhece-se, até aqui, o conteúdo do relatório de auditoria às contas do Ministério do Interior, que, pelo que se diz, detectou um rombo financeiro na ordem dos 200 mil milhões de contos.

Na realidade, a lista de casos tais é extensa, o que perdurará sem eira nem beira, pelo menos enquanto não tivermos, como país, uma Lei de Direito à Informação. Um instrumento legal tal ajudaria grandemente, a meu ver, a solidificar a boa governação, por intermédio da transparência, da prestação de contas e do exercício de uma cidadania activa, que é impossível sem conhecimento de causa.
Um grupo de organizações da sociedade civil moçambicana, com o MISA-Moçambique à cabeça, sentindo-se parte da governação, e, quem sabe, talvez sensibilizadas com a promessa de um antigo candidato a Presidente da República, que hoje o é por ter vencido as eleições de 2004, de promover uma “governação aberta e inclusiva”, em que “todos contam”, elaborou, ao cabo de três anos de debates à escala nacional, uma proposta de ante-projecto de Lei de Direito à Informação, que foi submetida a 30 de Novembro de 2005 à Assembleia da República (AR).
Infelizmente, volvidos cerca de três anos ainda não se vislumbram sinais de consideração, por parte dos deputados da AR, da retrocitada proposta, pelo menos para efeitos de debate naquela magna casa. Uma lei tal tornaria mais realística a “governação aberta e inclusiva”, e, aí, o “sonho” da ministra da Função Pública, de ver materializado o exercício do direito à informação, transformar-se-ia em realidade.
Associo-me aos que afirmam que uma Lei de Direito à Informação é mesmo importante, mas que ela, existindo, não irá acabar, de vez, com problemas de acesso à informação de interesse público. Mesmo pondo de fora a dita “informação classificada”, tanta outra informação simpática poderá continuar a ser alvo de secretismos. Mas a lei como tal estabeleceria balizas concretas sobre como isso deverá se efectivar.
Enquanto isso não sucede, talvez nos socorrêssemos, de uma forma sistemática, a soluções informais, um pouco na esteira do que sugerem o economista Joseph Stiglitz e o jornalista Carlos Cardoso, assassinado em 2000 em Maputo. Aqui, soluções informais ajudariam a contornar barreiras de acesso à informação.
Joseph Stiglitz diz que o maior desafio de qualquer governo que se pretende mais próximo dos seus cidadãos é tornar-se excessivamente transparente, embora reconheça que há muita racionalidade nos incentivos ao secretismo, pelo que são também abundantes truques tendentes a subverter leis de direito à informação.
Ele ajunta que em vários contextos as reuniões formais dos governos são públicas, daí que, no final do dia, ressalta que todas as decisões podem ser feitas numa reunião informal. Assim, a cultura de abertura no processo de governação é fundamental para tornar efectiva a participação dos cidadãos na gestão da coisa pública. Carlos Cardoso também defendeu, em 1998, a flexibilidade de métodos informais em várias situações de interesse público. Nada melhor que as suas próprias palavras:
“Queria (…) dar-vos um exemplo de Tomaz Salomão, [n]um caso em que ele utilizou o recurso ao informal de uma forma legítima, sã e benéfica para muita gente. Nos finais de 95, querendo uma quadra festiva sem a inflação desvairada dos nossos Dezembros, ele chamou a União Geral de Cooperativas e disse-lhes mais ou menos isto: meus amigos, nestas festas o frango no país tem de ser barato. Não pode subir por aí acima como nos anos anteriores. E entregou à UGC o monopólio da importação de frango para o período da quadra festiva mas pôs como condições que a UGC não utilizasse a sua própria rede de retalho para distribuir o frango importado mas sim a restante rede, e que não vendesse aos retalhistas o frango importado a mais do que 29 000 Mt/Kg. A UGC aceitou, o Governo cumpriu e, como todos vocês estão recordados, tivemos um natal e um fim de ano de 95 com frango barato. Era um momento de grande confiança das praças nele e em toda a equipa económica do Governo. E ele, nessa altura, tomou algumas decisões informais bastante acertadas”.Seja como for, parece fazer sentido, neste nosso Moçambique livre do jugo colonial português há 33 anos e formalmente democrático há 18 anos, 16 dos quais em paz, recordar o que James Madison defendeu em 1822, em carta dirigida a W. T. Barry: “Um governo do povo sem informação para o povo, ou sem os meios para o povo adquiri-la, é sim um governo, mas que é um prólogo à farsa ou à tragédia, ou talvez a ambas as coisas”.

No comments: